Semana On

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Gomorra - Roberto Saviano



Nos últimos dias passei algumas horas garimpando o Google e o Youtube por reportagens, relatos e documentários sobre a Camorra, a violentíssima máfia napolitana, que domina o sul da Itália e os italianos que ali vivem. Minha curiosidade adveio da leitura de “Gomorra”, primeiro livro do jornalista Roberto Saviano. Precisava olhar o rosto dos homens e mulheres citados em sua obra, gente capaz de monstruosidades e de atos de coragem que imaginamos restritos a ficção da literatura e do cinema.


"Gomorra" não é um livro que se leia sem que os olhos ardam, as mãos se crispem, o espírito encolha. A cada linha, a cada parágrafo, a obscenidade do poder a todo custo, a lógica dos quem têm no acúmulo de poder “o único motivo que os faz levantar da cama de manhã, tirar o pijama e permanecer de pé”, nos é explicitada por Saviano em um relato que em determinados momentos flerta com a prosa poética e em outros com o jornalismo.


Mais que uma obra literária, "Gomorra" é uma autópsia da Camorra e seus principais líderes, cuja sede de conquista transformou o sul da Itália em um canteiro de lixo e em um imenso morgue.

Lançada em 2006 (em 2008 no Brasil, pela Bertrand), a obra foi traduzido em mais de 40 países, vendeu milhões de exemplares, foi adaptada para o teatro e para o cinema – o filme arrebatou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, em 2008 – e catapultou Saviano para o olimpo literário. No entanto, soterrou sua vida particular, transformando-o em mais uma vítima de um “sistema” criminoso que se impõe a vastas regiões da Itália, transformando centenas de milhares de pessoas em massa de manobra, algumas vezes conivente, em outras, reféns de um modo de vida da qual não conseguem escapar.


Desde 2006, pelo menos 14 policiais e dois carros blindados se alternam 24 horas por dia na escolta de Saviano. Jurado de morte pela Camorra, ele dorme em hotéis e apartamentos alugados, nunca por mais de um mês. "Não consigo imaginar meu futuro. Gostaria de ter uma vida normal, com um pouco de liberdade. Eu me arrependi mil vezes de ter escrito Gomorra e não outro livro, que poderia ter me dado uma vida de escritor, e não de perseguido. Eu odiei o livro por muito tempo. Sabia que devia muito a ele, talvez até demais, mas às vezes eu gostaria de poder voltar atrás e nunca tê-lo escrito”, afirmou em recente entrevista.


A situação de Saviano tem paralelo com a das poucas pessoas que resolveram enfrentar a Camorra e que, se não tiveram a vida abreviada pelos killers da organização, foram lançadas em um ostracismo social. É o caso de uma jovem professora citada pelo autor no percurso da obra, que opta por testemunhar um crime cometido por matadores a soldo da máfia.


“O que torna escandaloso o gesto da jovem professora foi a sua escolha de considerar natural, instintivo, vital, o ato de poder testemunhar. Possuir esta conduta de vida é como acreditar realmente que a verdade pode existir... uma escolha inexplicável. Aí acontece de as pessoas próximas se sentirem em dificuldade, se sentirem descobertas pelo olhar de quem renunciou às regras da própria vida, que elas aceitam integralmente. Aceitam sem vergonha, porque afinal deve ser assim, porque é assim que sempre foi, porque não se pode mudar tudo com as próprias forças e então é melhor economizá-las e aderir à caravana e viver como é permitido viver.”


Saviano não descreve o panorama social napolitano sob as lupas da isenção e do afastamento crítico. Ele o decompõe com a intimidade de quem, como um verme, esteve inserido na carne deste corpo putrefato que incha e explode revelando toda a sujeira interior da estrutura física e moral da Camorra.

O porto de Nápoles é o ponto de partida para a jornada de Saviano. Lá desembarcam diariamente todo tipo de mercadorias vindas da Itália, do oriente e de várias partes da Europa. Desde resíduos químicos, material tóxico e lixo, vestuário e quinquilharias de todos os tipos produzidas nos mercados asiáticos, toneladas de cocaína, alta costura e até restos humanos descartados de cemitérios de forma clandestina para abrir espaço ao lucro. Tudo isso é despejado clandestinamente na região da Campânia sob os olhos gulosos dos boss da Camorra.


Em “Gomorra”, Saviano explica o esquema que permite que o lixo tóxico produzido no norte industrializado do país - cuja legislação de descarte de resíduos é mais rígida - seja enterrado no sul da Itália contaminando os lençóis freáticos e até mesmo a produção da conhecida mussarela local. Esmiúça a falsificação de alta costura, que inclui o trabalho escravo de mão-de-obra chinesa e é ostentada até mesmo no tapete vermelho hollywodiano. Aponta o controle mafioso de ramos importantes da construção civil, como a produção de cimento.


Se no século XX a máfia se ocupava apenas de negócios ilegais, como o jogo, o contrabando de bebidas e o tráfico de drogas, agora, financiada pelo lucro da ilegalidade, estes conglomerados criminosos tem cada vez mais participações em negócios legais e muito lucrativos. E estão mais perto do que imaginamos. Conexões brasileiras da máfia são citadas em alguns trechos da obra e nos fazem pensar em negócios ocorridos em nossas grandes (e não tão grandes) cidades.


Em meados de novembro de 2008 Saviano voltou a participar de eventos públicos, sempre acompanhado por sua escolta. Foi homenageado pela Academia Nobel, em Estocolmo, que promoveu uma conferência sobre liberdade de expressão em apoio a ele e a Salman Rushdie – cuja cabeça ainda está a prêmio devido ao livro “Versos Satânicos” - pela coragem de terem publicado obras que denunciaram autoridades religiosas, morais, políticas e criminosas.


A insistência em enfrentar uma estrutura tão entranhada no tecido social italiano e de expor suas fissuras de forma tão clara tem um preço alto. Saviano se diz sufocado por uma vida que não escolheu, mas da qual nunca fugiu. Talvez o último parágrafo de “Gomorra” traduza bem este sentimento, que compartilham todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se veem obrigados, sob a pena de enlouquecer, a contrapor o óbvio, a nadar contra a maré, a esmurrar a ponta da faca.


 “Em certas horas não há nada que se possa fazer senão seguir nossos delírios como alguma coisa que você não escolhe, que você sofre e pronto. Tive vontade de berrar, queria gritar, queria rasgar os pulmões com toda a força do estômago, romper a traqueia, com toda a voz que a garganta pudesse ainda soltar: “Malditos filhos-da-puta, eu ainda estou vivo!”.

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